terça-feira, 16 de julho de 2013

9- Um dia a mais com ele






Thibault
                — Acho que quero ser astronauta — disse Ben.
                Thibault estava jogando xadrez com ele na varanda dos fundos, tentando decidir sua próxima jogada. Tinha de ganhar o jogo e, apesar de não ter certeza absoluta, o fato de Ben ter começado a falar não lhe parecia um bom sinal.
                Ultimamente, estavam jogando muito xadrez, pois não houvera um só dia sem chuva forte desde que outubro havia começado, há dez dias. A região leste do Estado já estava alagada e todos os dias havia rios transbordando.
                — Parece uma boa idéia.
                — Astronauta ou bombeiro.
                — Conheci alguns bombeiros.
                — Ou médico.
                — Hmmm... — colocou a mão no bispo.
                — Eu não faria isso — disse Ben.
                Thibault olhou para cima.
                — Sei o que você está pensando em fazer e não vai dar certo.
                — O que eu devo fazer?
                — Algo que não seja isso.
                Thibault tirou a mão do bispo. Uma coisa era perder, outra era perder continuamente. E o pior é que ele não parecia estar diminuindo esse placar. Pelo contrário, Ben estava ficando cada vez melhor e mais rápido. O último jogo tinha durado todas as 31 jogadas.
                — Você gostaria de ver a minha casa da árvore? É muito legal. Tem uma grande passarela em cima do riacho e uma ponte móvel.
                — Adoraria conhecê-la.
                — Não agora. Um outro dia, talvez.

— Parece uma ótima idéia — disse Thibault, colocando a mão na torre.
                — Eu também não faria esse movimento.
                Thibault recolheu o braço e Ben inclinou-se para trás.
                — Só estou avisando.
                Deu de ombros, agindo exatamente como o garoto de 10 anos de idade que era.
                — O que você achar melhor.
                — Menos mover o bispo e a torre.
                Ben apontou para outra peça.
                — E o outro bispo. Conhecendo você, seria seu próximo movimento, já que está tentando uma forma de mover o cavalo. Mas isso também não vai funcionar, pois vou sacrificar meu bispo pelo seu, e mover minha rainha para pegar aquele peão. Isso bloqueia a sua rainha. e eu movo meu rei e a torre simultaneamente e meu cavalo para lá. Mais duas jogadas depois disso e será xeque-mate.
                Thibault levou a mão ao queixo.
                — Eu tenho alguma chance nesse jogo?
                — Quantas jogadas você ainda tem?
                — De três a sete.
                — Então, talvez, fosse melhor recomeçarmos.
                Ben ajeitou os óculos.
                — Talvez.
                — Você poderia ter dito isso antes.
                — Você parecia tão compenetrado que não quis incomodar.
                O próximo jogo não foi diferente do anterior. Na verdade, foi pior, pois Elizabeth decidiu juntar-se a eles, e a conversa entre os dois não mudou muito.
                Dava para ver Elizabeth tentando esconder o riso.

                Nas últimas semanas, haviam estabelecido uma rotina. Depois do trabalho, com a chuva incessante caindo lá fora, ele ia até a casa deles e jogava umas partidas de xadrez com Ben, ficando para jantar, depois os quatro sentavam-se à mesa e conversavam amigavelmente. Por fim, Ben subia para tomar banho e Nana os mandava sentar na varanda enquanto ela ficava limpando a cozinha, dizendo coisas do tipo "limpar para mim é o mesmo que andar nua para o macaco".
                Thibault sabia que queria deixá-los a sós. Ainda ficava impressionado como ela conseguia deixar de ser a patroa, assim que o dia terminava, para se tornar rapidamente a avó da mulher que ele estava namorando. Não achava que houvesse muitas pessoas capazes de mudar de função com tanta facilidade.
                Mas estava ficando tarde e Thibault sabia que era hora de ir embora. Nana estava falando ao telefone e Elizabeth tinha ido colocar Ben para dormir. Sentado na varanda, sentia os sinais do cansaço em seu corpo. Não vinha dormindo muito desde seu confronto com Clayton. Naquela noite, sem saber ao certo qual seria a reação de Clayton, voltou para sua casa e fez parecer como se tivesse planejado passar uma noite normal. Em vez disso, depois que apagou as luzes, saiu pela janela dos fundos de seu quarto e caminhou com Zeus pelo meio da mata. Apesar da chuva, ficou fora a maior parte do tempo, vendo se Clayton ia aparecer. Na noite seguinte, ficou de guarda na casa de Elizabeth; na terceira noite, ficou alternando entre a casa dela e a sua. A chuva interminável não mais incomodava a ele e a Zeus, pois adaptou uns abrigos camuflados para mantê-los secos. A parte difícil era trabalhar depois de ter dormido apenas algumas horas antes do dia clarear. Desde então, ficava de lia em noites alternadas, mas, mesmo assim, não era o suficiente para colocar o sono em dia.

                Elizabeth sentou-se ao lado dele na cadeira de balanço da varanda.
                — Não gosta de ficar ensopado?
                — Digamos que não seja o mesmo que estar de férias.
                — Sinto muito.
                — Tudo bem. Não estou reclamando. Na verdade, quase não me preocupo com isso; e é melhor que eu me molhe do que Nana. E amanhã é sexta-feira, não é?
                Ela sorriu.
                — Hoje eu vou levar você para casa e dessa vez não aceito não como resposta.
                — Tudo bem.
                Elizabeth olhou pela janela antes de se virar novamente para Thibault.
                — Falou a verdade quando disse que tocava piano, não falou?
                — Eu toco piano.
                — Quando foi a última vez que tocou?
                Deu de ombros, pensando nisso.
                — Há dois ou três anos.
                — No Iraque?
                Ele concordou com a cabeça.
                — Era aniversário de um dos comandantes. Ele adorava Willie Smith, um dos grandes pianistas de jazz entre os anos 1940 e 1950. Ficaram sabendo que eu tocava e tive de me apresentar.
                — No Iraque — ela repetiu, sem esconder a surpresa.
                — Até os fuzileiros precisam relaxar.

                — No próximo domingo ela fará um solo ainda mais longo. Está muito animada com a idéia.
                — Você não está?
                — Mais ou menos — suspirou com um olhar triste. — Acontece que ontem Abigail caiu e quebrou o pulso. Era sobre isso que Nana estava falando ao telefone.
                — Quem é Abigail?
                — A pianista da igreja. Acompanha o coral todos os domingos — Elizabeth começou a balançar a cadeira para frente e para trás, de olho na tempestade. — Bem, Nana disse que ia arrumar um substituto. Na verdade, ela fez uma promessa.
                — Ah?
                — Também disse que já tinha uma pessoa em mente.
                — Entendi.
                Elizabeth deu de ombros.
                — Só achei que seria bom você saber. Tenho certeza de que daqui a pouquinho Nana vai falar com você e não queria que fosse pego desprevenido.
                Achei melhor vir avisá-lo primeiro.

                — Agradeço.
                Thibault não disse nada por um bom tempo. No silêncio que se seguiu, Elizabeth colocou a mão no joelho dele.
                — O que você acha?
                — Tenho a sensação de que não tenho escolha.
                — Claro que tem. Nana não vai forçá-lo a nada.
                — Mesmo depois de ter feito uma promessa?
                — Ela acabaria entendendo — colocou a mão no coração. — Assim que curasse seu coração partido, tenho certeza de que o perdoaria.
                — Ah!
                — E acho que isso não iria causar nenhum mal à saúde dela. Mesmo com o AVC e todo o desaponta mento sentido, não acho que ela ia ficar de cama ou coisa assim.
                Thibault abriu um sorriso.
                — Você não acha que está exagerando?
                Os olhos de Elizabeth brilhavam diante da travessura.
                — Talvez, mas a questão é, você vai tocar?
                — Acho que sim.
                — Ótimo. E saiba que vai ter de ensaiar amanhã.
                — Tudo bem.
                — Pode ser que o ensaio seja longo. Os ensaios sempre são longos às sextas-feiras. Elas adoram música, sabe?
                — Ótimo — suspirou.
                — Veja desta forma: você não vai ter de trabalhar na chuva o dia todo.
                — Que maravilha!
                Ela lhe deu um beijo no rosto.

                — Você é um bom homem. Vou silenciosamente torcer por você quando estiver sentada na igreja.
                — Obrigado.
                — Ah, e quando Nana sair, não a deixe perceber que eu lhe falei alguma coisa.
                — Não deixarei.
                — E tente parecer animado. Até mesmo, honrado.
                Como se nunca tivesse imaginado que ela fosse lhe oferecer uma oportunidade tão maravilhosa.
                — Não posso simplesmente dizer sim?
                — Não. Nana vai querer que você se entusiasme. Como disse, significa muito para ela.
                — Ah — ele segurou nas mãos dela. — Você sabe que poderia ter simplesmente pedido a minha ajuda. Não precisava de toda essa história carregada de sentimento de culpa.
                — Eu sei. Mas foi muito mais divertido pedir do outro jeito.
                Como se tivessem combinado, Nana apareceu à porta com um leve sorriso, segurou no corrimão e perguntou a ele.
                — Você ainda toca piano de vez em quando?
                Thibault fez o maior esforço para não cair na risada.
                Thibault foi apresentado à diretora musical na tarde seguinte, e, apesar do seu desprezo inicial ao jeans, à camiseta e ao cabelo comprido dele, não demorou muito para perceber que ele não só sabia tocar, como era também um músico perfeito. Depois de se aquecerem, cometeu pouquíssimos erros, porém o fato de as peças escolhidas não serem tão difíceis havia ajudado. Depois do ensaio, quando o pastor apareceu, explicaram-lhe os procedimentos do culto para que ele soubesse o que esperar exatamente.

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