Beth
Talvez o tivesse julgado mal. Pelo menos em relação ao trabalho. Nas últimas três semanas, Logan Thibault tinha sido o empregado perfeito. Mais que perfeito até. Não tinha faltado uma vez sequer, e ainda chegava cedo para alimentar os cães — algo que Nana sempre fazia antes do acidente — e saía mais tarde, após varrer o chão do escritório. Uma vez, até o viu usando limpa-vidros para limpar as janelas do escritório. Os canis estavam mais limpos do que nunca, a grama do campo de treinamento estava aparada e, sempre que podia, ele procurava organizar os arquivos do escritório na parte da tarde. Beth sentiu-se meio culpada ao entregar-lhe seu primeiro pagamento. Ela sabia que o salário mal dava para viver. Mas, quando entregou o cheque a ele, o que ele fez foi sorrir e dizer: "Obrigado! Que bom!".Tudo o que conseguiu responder foi um tímido: "De nada."
Além desse dia, quase nunca se viam. As aulas já haviam
começado há três semanas e Beth ainda estava tentando pegar o ritmo da escola
novamente, o que a levava a ficar muitas horas confinada em seu pequeno
escritório em casa, atualizando planos de aula e corrigindo lições de casa. Por
outro lado, Ben, assim que chegava em casa, pulava do carro para ir brincar cor
Zeus. Observando pela janela, ele parecia considerar o cachorro o seu novo
melhor amigo, e o cão parecia sentir o mesmo por ele. Assim que o carro
apontava no caminho de entrada da casa, o cachorro começava a procurar um pau,
e vinha logo cumprimentar Ben assim que a porta do carro se abria. Ben saía do
carro e Beth, subindo os degraus da varanda, já conseguia ouvir o filho rindo
enquanto ele e o cão corriam pele gramado. Logan — o nome parecia combinar mais
com ele do que Thibault, apesar do que havia dito no riacho — também os
observava, com um leve sorriso no rosto, voltando em seguida para suas
atividades.
Apesar
do que sua intuição lhe dizia, gostava do sorriso dele, da forma como se dava
bem com Nana e com Ben. Sabia que às vezes a guerra conseguia afetar a mente
dos soldados, fazendo com que sua adaptação à vida civil fosse mais difícil,
mas ele não aparentava ter síndrome de estresse traumático. Parecia
praticamente normal — fora o fato de ter atravessado o país a pé —, o que
poderia ser uma indicação de que talvez ele nunca tivesse saído do país a
trabalho. Nana havia jurado que não tinha perguntado isso a ele ainda.
Depois de lavar a louça, Beth
foi para a varanda da frente passar alguns minutos sozinha. Sabia que Nana já
tinha tomado sua decisão e que sua preocupação era exagerada. Acidente vascular
ou não, Nana sabia cuidar de si mesma, e a tia Mimi ia adorar passar um tempo
com ela. Atualmente, tia Mimi tinha dificuldades até para ir à cozinha e talvez
essa fosse a última chance de Nana passar uma semana com ela Mas o que a deixou
preocupada foi o tipo de conversa que tiveram, não a viagem em si. O pequeno
combate verbal travado durante o jantar dava sinais de que dali para frente,
Beth passaria a desempenhar um novo papel — um papel para o qual não se sentia
totalmente preparada. Ser a mãe de Ben era fácil, seu papel e suas
responsabilidades eram bem definidos Mas fazer a mesma coisa com Nana? Nana
sempre foi tão cheia de vida, tão cheia de energia, que pensou ser inconcebível a idéia de Nana um dia
vir diminuir o ritmo.
E ela
estava indo bem, muito bem de fato, mesmo após o acidente. Mas como seria se
Nana resolvesse fazer algo que Beth considerasse altamente contrário aos
interesses de Nana? Algo simples... como, dirigir à noite, por exemplo? Nana já
não enxergava tão bem quanto antes, e como ela ia reagir quando Nana insistisse
em ir de carro até a venda depois do trabalho?
— Você está bem?
Dispersa
em suas lembranças, Beth não havia percebido que Logan estava na varanda. Suas
feições pareciam mais suaves do que se lembrava à luz de cair da noite.
— Sim,
estou bem — disse, ajeitando a blusa.
—
Estava só pensando.
— Estou
com a chave do caminhão. Queria entregá-la antes de ir para casa.
Quando
ele entregou a chave a ela, sabia que poderia simplesmente agradecer e dizer
boa noite, mas. talvez por ainda estar chateada com a decisão de Nana de viajar
sem ao menos tê-la consultado, ou talvez por querer tomar suas próprias
decisões a respeito de Logan, pegou a chave e correspondeu ao olhar dele.
—
Obrigada! Foi um longo dia, hein?
Se ele
ficou surpreso com seu comentário, não mostrou nada.
— Não
foi tão ruim. Fiz um monte de coisas.
— Como
reaver o direito de dirigir legalmente?
Ele
sorriu.
— Entre
outras coisas.
— O
breque está funcionando bem?
— Só
está rangendo um pouco.
Beth
sorriu pensando nisso.
—
Aposto que o examinador adorou!
— Com
certeza. O sorriso dele dizia tudo.
Ela riu
e então nenhum dos dois disse nada. No horizonte, relâmpagos brilhavam. Levou
algum tempo até ouvirem o som do trovão e dava para ver que a tempestade ainda
estava distante. No silêncio, percebeu que Logan olhava para ela novamente com
uma expressão de déjà vu. Ele logo pareceu notá-lo e virou o olhar rapidamente.
Beth seguiu seu olhar e viu que Zeus ia em direção às árvores.
O cão
ficou parado, indo para Logan como se dissesse: "Quer dar um
passeio?"
para
enfatizar ainda mais sua vontade, ele latiu e Logan balançou a cabeça.
—
Espere um pouco! — virou-se para Beth e disse: — Ficou preso por algumas horas
e agora quer passear.
— Ele
já não está fazendo isso?
— Não,
ele quer ir passear comigo. Ele não pode me perder de vista.
—
Nunca.
— É
mais forte que ele. É um pastor e eu sou seu rebanho.
Beth
ergueu a sobrancelha.
—
Rebanho pequeno.
— É,
mas está aumentando. Ele está bem apegado a Ben e a Nana.
— A mim
não? — ela fingiu-se magoada.
Logan
deu de ombros.
— Você
não atirou um pau para ele ir buscar.
— Isso
é tudo que preciso fazer?
— Ele
se contenta com pouco.
Ela riu
novamente. Não esperava que ele tivesse senso de humor.
— Quer
passear com a gente? Para Zeus é o melhor que atirar um pau.
— Ah,
é? — disse, em uma tentativa de ganhar tempo.
— Não
faço as regras. Só as conheço. E detestaria que você se sentisse fora do
rebanho.
Hesitou
um pouco antes de aceitar o fato de que ele estava apenas sendo simpático.
Olhou por cima do ombro.
—
Talvez seja melhor avisar Ben e Nana que vou com você.
— Pode
avisar, mas não vamos longe. Zeus só quer ir ao riacho se molhar um pouco na
água, antes de voltarmos para casa. Senão, sente muito calor — girou os
calcanhares, com as mãos no bolso. — Vamos.
— Sim,
vamos.
Desceram
da varanda e seguiram pelo caminho de cascalho. Zeus na frente deles.
Caminhavam lado a lado, mantendo a distância suficiente para não se tocarem
acidentalmente.
— Nana
me falou que você é professora.
Beth
concordou com a cabeça.
—
Segundo ano.
— Como
são seus alunos este ano?
—
Parece-me um bom grupo. Pelo menos, até agora. E já tenho sete mães que se
ofereceram para o trabalho voluntário, o que é sempre um bom sinal.
Passaram
ao lado do canil e seguiram pela trilha estreita que levava ao riacho. O sol já
havia se escondido atrás das árvores, deixando a trilha escura.
Trovões
foram ouvidos novamente enquanto caminhavam.
— Há
quanto tempo dá aulas?
— Há
três anos.
— Você
gosta?
— A
maior parte do tempo. Trabalho com muitas pessoas, isso facilita o trabalho.
— Mas?
Ela
pareceu não entender a pergunta. Ele enfiou as mãos nos bolsos e continuou.
— Há
sempre um "mas" quando falamos de nossos trabalhos. Como, por
exemplo, gosto do meu trabalho e meus colegas são ótimos, mas... alguns se
vestem como super-heróis durante os fins de semana e não consigo parar de
pensar se talvez não batam muito bem da bola.
Beth
riu.
— Não,
eles são ótimos. E adoro ser professora. Só que, de vez em quando, aparece
algum aluno com um histórico familiar complicado e não há nada que possamos
fazer por ele. É o suficiente para deixar o coração partido, às vezes — disse e
continuou caminhando em silêncio. — E você? Gosta de trabalhar aqui?
— Gosto
— sua resposta pareceu sincera.
— Mas?
Ele
balançou a cabeça.
— Sem
mas.
— Isso
não é justo. Eu falei a verdade para você.
— É
claro, mas você não estava conversando com a neta da sua chefe. E
falando
nela, você tem idéia da hora em que ela pretende sair amanhã?
— Ela
não te falou?
— Não.
Pensei em perguntar a ela quando fosse devolver a chave.
— Ela
não falou nada, mas tenho certeza de que vai querer treinar e exercitar os
cachorros antes de ir para que eles não fiquem muito inquietos.
Estavam
bem próximos do riacho e Zeus mergulhou, espalhando água e latindo. Logan e
Beth ficaram vendo sua brincadeira até que Logan apontou para um galho mais
baixo. Beth sentou-se ao lado dele, novamente tomando cuidado para manter a
distância necessária.
— Qual
a distância de Greensboro? — ele perguntou.
— Cinco
horas entre ir e voltar. Quase todo o trajeto é pela interestadual.
— Você
tem alguma ideia de quando ela pretende voltar?
Beth
deu de ombros.
— Ela
me disse uma semana — Ah... — Logan mostrou-se reflexivo.
Tudo
arranjado, uma ova, pensou Beth. Logan sabia menos do que ela.
— Estou
sentindo que Nana não te deu muitos detalhes, não é?
— Só me
disse que iria e que eu ia dirigir seu carro, então seria melhor estar com a
habilitação em dia. Ah, também me disse que eu ia trabalhar no próximo fim de
semana.
— Era
de se imaginar. Veja... eu posso cuidar disso se tiver outras coisas para
fazer.
— Sem
problemas. Não tinha nada planejado. E há algumas coisas em que ainda não tive
a chance de dar uma olhada. Algumas coisinhas que precisam de conserto.
— Como
instalar um ar-condicionado no escritório do canil?
—
Estava pensando em coisas como a pintura das portas e batentes e ver o que
preciso fazer para abrir a janela do escritório.
— A que
foi pintada fechada? Boa sorte. Meu avô tentou consertá-la durante muitos anos.
Uma vez, ficou um dia inteiro com uma navalha e acabou se enchendo de band-aids
por semanas. Mesmo assim, ela não abriu.
— Assim
você não está me ajudando nada!
— Só
estou tentando te avisar. É engraçado porque o meu avô o culpado pela pintura
dessa forma, e ele tinha um depósito lotado com todo o tipo de ferramenta que
você possa imaginar. Era o tipo de pessoa que achava que podia consertar qualquer
coisa, mas o resultado nunca saía conforme o planejado. Era mais um visionário
do que alguém ligado a detalhes práticos. Você já viu a casa da árvore de Ben e
a ponte?
— De
longe — Logan admitiu.
— Um
exemplo do que estou falando. Meu avô passou a maior parte do verão para
fazê-la e até hoje tenho de me encolher sempre que Ben vai até lá.
Não
faço a mínima idéia de como ela está se aguentando até hoje. Fico com medo, mas
Ben adora ir até lá, especialmente quando está nervoso ou chateado com alguma
coisa. Ele diz que é seu esconderijo. Vai muito até lá — quando ela ficou em
silêncio, Logan percebeu sua preocupação, mas logo passou, e ela continuou. —
De qualquer forma, vovô era especial. Era todo coração e alma, e nos deu a
infância mais idílica que você possa imaginar.
— Nos
deu?
— Meu
irmão e eu — disse, olhando fixamente para as árvores e para os reflexos
prateados das folhas à luz do luar. — A Nana te contou o que aconteceu com os
meus pais?
—
Rapidamente. Sinto muito.
Beth
esperou, imaginando se Logan ia dizer alguma coisa, mas ele ficou em silêncio.
— Como
foi — perguntou. — Atravessar o país a pé?
Logan
fez uma pausa antes de responder.
— Foi tranquilo. Ia aonde queria, quando queria, sem pressa de chegar lá.
— Você
faz até parecer terapêutico.
— E
acho que foi — disse, com um triste sorriso no rosto, que logo se desfez. — De
certo modo.
Assim
que disse isso, a luz do cair da noite refletiu-se em seus olhos, fazendo-os
parecer que mudavam de cor.
—
Encontrou o que procurava? — ela perguntou, com uma expressão séria.
Logan
fez uma pausa.
— Sim,
encontrei.
— E?
— Ainda
não sei.
Beth
pensou na resposta, sem ter muita certeza se tinha entendido.
— Veja
bem, não me leve a mal, mas não consigo ver você ficando muito tempo em algum
lugar.
— Diz
isso porque eu vim a pé do Colorado?
— Em
grande parte, sim.
Ele
riu. Pela primeira vez, Beth tomou consciência que há muito tempo não tinha uma
conversa dessas. Fluía com facilidade e naturalidade. Com Adam a conversa não
era fácil, exigia um enorme esforço ambas as partes. Ainda não estava certa
sobre o que sentia em relação a Logan, mas o certo é que finalmente estavam se
dando bem. Ela pigarreou.
— Bem,
quanto a amanhã, pensei se não seria melhor ir com o meu carro e eu fico com o caminhão
para trabalhar. Ainda estou preocupada com o breque.
— Tenho
de admitir que não me sinto muito seguro também. Mas acho que posso consertar.
Não até amanhã, mas até o fim de semana.
— Você
também conserta carros?
— Sim.
Mas é fácil consertar breques. Só preciso trocar as pastilhas. É
bem
provável que o disco esteja ordem.
— Há
alguma coisa que você não saiba fazer? — perguntou, demonstrando-se apenas um
pouco admirada.
— Sim.
Ela riu.
— Que
bom! Mas tudo bem, vou falar com Nana e tenho certeza de que não haverá
problema se forem com meu carro. Não confio no breque para uma rodovia. E pode
deixar que dou uma olhada nos cães assim que chegar da escola, está bem? Tenho
certeza de que Nana não deve ter falado sobre nada disso com você. Mas vamos
fazer dessa maneira.
Logan
concordou e nessa hora Zeus saiu da água. Sacudiu o pelo e, depois, chegou mais
perto para cheirar Beth, em seguida lambeu suas mãos.
— Ele
gosta de mim.
—
Provavelmente está só sentindo seu gosto.
—
Engraçadinho — era o tipo de coisa que Drake teria dito, o que lhe deu
novamente uma vontade repentina de ficar sozinha. Levantou-se.
— É
melhor voltarmos. Tenho certeza de que devem estar imaginando por onde ando.
Logan
percebeu que as nuvens continuavam engrossando.
— Sim,
tenho de ir também. Quero chegar em casa antes da chuva que se aproxima.
— Quer
uma carona?
—
Obrigado! Mas não precisa. Gosto de andar.
—
Sério? Nem imaginava! — disse, com um leve sorriso.
Voltaram
para casa pelo mesmo caminho quando chegaram ao trecho de cascalho, Beth tirou
as mãos dos bolsos e despediu-se com um aceno.
—
Obrigada pela caminhada, Logan.
Esperava
que ele fosse corrigi-la, como havia feito com Ben, que lhe pedisse para
chamá-lo de Thibault, mas ele não o fez. Em vez disso, ergueu o queixo
ligeiramente e sorriu.
— Eu
que agradeço, Elizabeth.
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