terça-feira, 16 de julho de 2013

4- Conhecendo mais o estranho



         

Beth

            Talvez o tivesse julgado mal. Pelo menos em relação ao trabalho. Nas últimas três semanas, Logan Thibault tinha sido o empregado perfeito. Mais que perfeito até. Não tinha faltado uma vez sequer, e ainda chegava cedo para alimentar os cães — algo que Nana sempre fazia antes do acidente — e saía mais tarde, após varrer o chão do escritório. Uma vez, até o viu usando limpa-vidros para limpar as janelas do escritório. Os canis estavam mais limpos do que nunca, a grama do campo de treinamento estava aparada e, sempre que podia, ele procurava organizar os arquivos do escritório na parte da tarde. Beth sentiu-se meio culpada ao entregar-lhe seu primeiro pagamento. Ela sabia que o salário mal dava para viver. Mas, quando entregou o cheque a ele, o que ele fez foi sorrir e dizer: "Obrigado! Que bom!".Tudo o que conseguiu responder foi um tímido: "De nada."

            Além desse dia, quase nunca se viam. As aulas já haviam começado há três semanas e Beth ainda estava tentando pegar o ritmo da escola novamente, o que a levava a ficar muitas horas confinada em seu pequeno escritório em casa, atualizando planos de aula e corrigindo lições de casa. Por outro lado, Ben, assim que chegava em casa, pulava do carro para ir brincar cor Zeus. Observando pela janela, ele parecia considerar o cachorro o seu novo melhor amigo, e o cão parecia sentir o mesmo por ele. Assim que o carro apontava no caminho de entrada da casa, o cachorro começava a procurar um pau, e vinha logo cumprimentar Ben assim que a porta do carro se abria. Ben saía do carro e Beth, subindo os degraus da varanda, já conseguia ouvir o filho rindo enquanto ele e o cão corriam pele gramado. Logan — o nome parecia combinar mais com ele do que Thibault, apesar do que havia dito no riacho — também os observava, com um leve sorriso no rosto, voltando em seguida para suas atividades.
            Apesar do que sua intuição lhe dizia, gostava do sorriso dele, da forma como se dava bem com Nana e com Ben. Sabia que às vezes a guerra conseguia afetar a mente dos soldados, fazendo com que sua adaptação à vida civil fosse mais difícil, mas ele não aparentava ter síndrome de estresse traumático. Parecia praticamente normal — fora o fato de ter atravessado o país a pé —, o que poderia ser uma indicação de que talvez ele nunca tivesse saído do país a trabalho. Nana havia jurado que não tinha perguntado isso a ele ainda.
                Depois de lavar a louça, Beth foi para a varanda da frente passar alguns minutos sozinha. Sabia que Nana já tinha tomado sua decisão e que sua preocupação era exagerada. Acidente vascular ou não, Nana sabia cuidar de si mesma, e a tia Mimi ia adorar passar um tempo com ela. Atualmente, tia Mimi tinha dificuldades até para ir à cozinha e talvez essa fosse a última chance de Nana passar uma semana com ela Mas o que a deixou preocupada foi o tipo de conversa que tiveram, não a viagem em si. O pequeno combate verbal travado durante o jantar dava sinais de que dali para frente, Beth passaria a desempenhar um novo papel — um papel para o qual não se sentia totalmente preparada. Ser a mãe de Ben era fácil, seu papel e suas responsabilidades eram bem definidos Mas fazer a mesma coisa com Nana? Nana sempre foi tão cheia de vida, tão cheia de energia, que pensou ser inconcebível a idéia de Nana um dia vir diminuir o ritmo.
                E ela estava indo bem, muito bem de fato, mesmo após o acidente. Mas como seria se Nana resolvesse fazer algo que Beth considerasse altamente contrário aos interesses de Nana? Algo simples... como, dirigir à noite, por exemplo? Nana já não enxergava tão bem quanto antes, e como ela ia reagir quando Nana insistisse em ir de carro até a venda depois do trabalho?
           

             — Você está bem?
                Dispersa em suas lembranças, Beth não havia percebido que Logan estava na varanda. Suas feições pareciam mais suaves do que se lembrava à luz de cair da noite.

                — Sim, estou bem — disse, ajeitando a blusa.
                — Estava só pensando.
                — Estou com a chave do caminhão. Queria entregá-la antes de ir para casa.
                Quando ele entregou a chave a ela, sabia que poderia simplesmente agradecer e dizer boa noite, mas. talvez por ainda estar chateada com a decisão de Nana de viajar sem ao menos tê-la consultado, ou talvez por querer tomar suas próprias decisões a respeito de Logan, pegou a chave e correspondeu ao olhar dele.

                — Obrigada! Foi um longo dia, hein?
                Se ele ficou surpreso com seu comentário, não mostrou nada.
                — Não foi tão ruim. Fiz um monte de coisas.
                — Como reaver o direito de dirigir legalmente?
                Ele sorriu.
                — Entre outras coisas.
                — O breque está funcionando bem?
                — Só está rangendo um pouco.
                Beth sorriu pensando nisso.
                — Aposto que o examinador adorou!
                — Com certeza. O sorriso dele dizia tudo.

                Ela riu e então nenhum dos dois disse nada. No horizonte, relâmpagos brilhavam. Levou algum tempo até ouvirem o som do trovão e dava para ver que a tempestade ainda estava distante. No silêncio, percebeu que Logan olhava para ela novamente com uma expressão de déjà vu. Ele logo pareceu notá-lo e virou o olhar rapidamente. Beth seguiu seu olhar e viu que Zeus ia em direção às árvores.

                O cão ficou parado, indo para Logan como se dissesse: "Quer dar um passeio?"
                para enfatizar ainda mais sua vontade, ele latiu e Logan balançou a cabeça.
                — Espere um pouco! — virou-se para Beth e disse: — Ficou preso por algumas horas e agora quer passear.
                — Ele já não está fazendo isso?


                — Não, ele quer ir passear comigo. Ele não pode me perder de vista.
                — Nunca.
                — É mais forte que ele. É um pastor e eu sou seu rebanho.
                Beth ergueu a sobrancelha.
                — Rebanho pequeno.
                — É, mas está aumentando. Ele está bem apegado a Ben e a Nana.
                — A mim não? — ela fingiu-se magoada.
                Logan deu de ombros.
                — Você não atirou um pau para ele ir buscar.
                — Isso é tudo que preciso fazer?
                — Ele se contenta com pouco.
                Ela riu novamente. Não esperava que ele tivesse senso de humor.
                — Quer passear com a gente? Para Zeus é o melhor que atirar um pau.
                — Ah, é? — disse, em uma tentativa de ganhar tempo.
                — Não faço as regras. Só as conheço. E detestaria que você se sentisse fora do rebanho.

                Hesitou um pouco antes de aceitar o fato de que ele estava apenas sendo simpático. Olhou por cima do ombro.
                — Talvez seja melhor avisar Ben e Nana que vou com você.
                — Pode avisar, mas não vamos longe. Zeus só quer ir ao riacho se molhar um pouco na água, antes de voltarmos para casa. Senão, sente muito calor — girou os calcanhares, com as mãos no bolso. — Vamos.
                — Sim, vamos.
                Desceram da varanda e seguiram pelo caminho de cascalho. Zeus na frente deles. Caminhavam lado a lado, mantendo a distância suficiente para não se tocarem acidentalmente.
                — Nana me falou que você é professora.

                Beth concordou com a cabeça.
                — Segundo ano.
                — Como são seus alunos este ano?
                — Parece-me um bom grupo. Pelo menos, até agora. E já tenho sete mães que se ofereceram para o trabalho voluntário, o que é sempre um bom sinal.
                Passaram ao lado do canil e seguiram pela trilha estreita que levava ao riacho. O sol já havia se escondido atrás das árvores, deixando a trilha escura.
                Trovões foram ouvidos novamente enquanto caminhavam.
                — Há quanto tempo dá aulas?
                — Há três anos.
                — Você gosta?
                — A maior parte do tempo. Trabalho com muitas pessoas, isso facilita o trabalho.
                — Mas?
                Ela pareceu não entender a pergunta. Ele enfiou as mãos nos bolsos e continuou.
                — Há sempre um "mas" quando falamos de nossos trabalhos. Como, por exemplo, gosto do meu trabalho e meus colegas são ótimos, mas... alguns se vestem como super-heróis durante os fins de semana e não consigo parar de pensar se talvez não batam muito bem da bola.
                Beth riu.
                — Não, eles são ótimos. E adoro ser professora. Só que, de vez em quando, aparece algum aluno com um histórico familiar complicado e não há nada que possamos fazer por ele. É o suficiente para deixar o coração partido, às vezes — disse e continuou caminhando em silêncio. — E você? Gosta de trabalhar aqui?
                — Gosto — sua resposta pareceu sincera.
                — Mas?
                Ele balançou a cabeça.
                — Sem mas.

                — Isso não é justo. Eu falei a verdade para você.
                — É claro, mas você não estava conversando com a neta da sua chefe. E
                falando nela, você tem idéia da hora em que ela pretende sair amanhã?
                — Ela não te falou?
                — Não. Pensei em perguntar a ela quando fosse devolver a chave.
                — Ela não falou nada, mas tenho certeza de que vai querer treinar e exercitar os cachorros antes de ir para que eles não fiquem muito inquietos.
                Estavam bem próximos do riacho e Zeus mergulhou, espalhando água e latindo. Logan e Beth ficaram vendo sua brincadeira até que Logan apontou para um galho mais baixo. Beth sentou-se ao lado dele, novamente tomando cuidado para manter a distância necessária.
                — Qual a distância de Greensboro? — ele perguntou.
                — Cinco horas entre ir e voltar. Quase todo o trajeto é pela interestadual.
                — Você tem alguma ideia de quando ela pretende voltar?

                Beth deu de ombros.
                — Ela me disse uma semana — Ah... — Logan mostrou-se reflexivo.
                Tudo arranjado, uma ova, pensou Beth. Logan sabia menos do que ela.
                — Estou sentindo que Nana não te deu muitos detalhes, não é?
                — Só me disse que iria e que eu ia dirigir seu carro, então seria melhor estar com a habilitação em dia. Ah, também me disse que eu ia trabalhar no próximo fim de semana.
                — Era de se imaginar. Veja... eu posso cuidar disso se tiver outras coisas para fazer.
                — Sem problemas. Não tinha nada planejado. E há algumas coisas em que ainda não tive a chance de dar uma olhada. Algumas coisinhas que precisam de conserto.
                — Como instalar um ar-condicionado no escritório do canil?

                — Estava pensando em coisas como a pintura das portas e batentes e ver o que preciso fazer para abrir a janela do escritório.
                — A que foi pintada fechada? Boa sorte. Meu avô tentou consertá-la durante muitos anos. Uma vez, ficou um dia inteiro com uma navalha e acabou se enchendo de band-aids por semanas. Mesmo assim, ela não abriu.
                — Assim você não está me ajudando nada!
                — Só estou tentando te avisar. É engraçado porque o meu avô o culpado pela pintura dessa forma, e ele tinha um depósito lotado com todo o tipo de ferramenta que você possa imaginar. Era o tipo de pessoa que achava que podia consertar qualquer coisa, mas o resultado nunca saía conforme o planejado. Era mais um visionário do que alguém ligado a detalhes práticos. Você já viu a casa da árvore de Ben e a ponte?
                — De longe — Logan admitiu.
                — Um exemplo do que estou falando. Meu avô passou a maior parte do verão para fazê-la e até hoje tenho de me encolher sempre que Ben vai até lá.

                Não faço a mínima idéia de como ela está se aguentando até hoje. Fico com medo, mas Ben adora ir até lá, especialmente quando está nervoso ou chateado com alguma coisa. Ele diz que é seu esconderijo. Vai muito até lá — quando ela ficou em silêncio, Logan percebeu sua preocupação, mas logo passou, e ela continuou. — De qualquer forma, vovô era especial. Era todo coração e alma, e nos deu a infância mais idílica que você possa imaginar.
                — Nos deu?
                — Meu irmão e eu — disse, olhando fixamente para as árvores e para os reflexos prateados das folhas à luz do luar. — A Nana te contou o que aconteceu com os meus pais?
                — Rapidamente. Sinto muito.
                Beth esperou, imaginando se Logan ia dizer alguma coisa, mas ele ficou em silêncio.
                — Como foi — perguntou. — Atravessar o país a pé?
                Logan fez uma pausa antes de responder.
                — Foi tranquilo. Ia aonde queria, quando queria, sem pressa de chegar lá.
                — Você faz até parecer terapêutico.

                — E acho que foi — disse, com um triste sorriso no rosto, que logo se desfez. — De certo modo.
                Assim que disse isso, a luz do cair da noite refletiu-se em seus olhos, fazendo-os parecer que mudavam de cor.
                — Encontrou o que procurava? — ela perguntou, com uma expressão séria.
                Logan fez uma pausa.
                — Sim, encontrei.
                — E?
                — Ainda não sei.
                Beth pensou na resposta, sem ter muita certeza se tinha entendido.
                — Veja bem, não me leve a mal, mas não consigo ver você ficando muito tempo em algum lugar.
                — Diz isso porque eu vim a pé do Colorado?
                — Em grande parte, sim.
                Ele riu. Pela primeira vez, Beth tomou consciência que há muito tempo não tinha uma conversa dessas. Fluía com facilidade e naturalidade. Com Adam a conversa não era fácil, exigia um enorme esforço ambas as partes. Ainda não estava certa sobre o que sentia em relação a Logan, mas o certo é que finalmente estavam se dando bem. Ela pigarreou.
                — Bem, quanto a amanhã, pensei se não seria melhor ir com o meu carro e eu fico com o caminhão para trabalhar. Ainda estou preocupada com o breque.
                — Tenho de admitir que não me sinto muito seguro também. Mas acho que posso consertar. Não até amanhã, mas até o fim de semana.
                — Você também conserta carros?
                — Sim. Mas é fácil consertar breques. Só preciso trocar as pastilhas. É
                bem provável que o disco esteja ordem.
                — Há alguma coisa que você não saiba fazer? — perguntou, demonstrando-se apenas um pouco admirada.
                — Sim.

Ela riu.
                — Que bom! Mas tudo bem, vou falar com Nana e tenho certeza de que não haverá problema se forem com meu carro. Não confio no breque para uma rodovia. E pode deixar que dou uma olhada nos cães assim que chegar da escola, está bem? Tenho certeza de que Nana não deve ter falado sobre nada disso com você. Mas vamos fazer dessa maneira.
                Logan concordou e nessa hora Zeus saiu da água. Sacudiu o pelo e, depois, chegou mais perto para cheirar Beth, em seguida lambeu suas mãos.
                — Ele gosta de mim.
                — Provavelmente está só sentindo seu gosto.
                — Engraçadinho — era o tipo de coisa que Drake teria dito, o que lhe deu novamente uma vontade repentina de ficar sozinha. Levantou-se.
                — É melhor voltarmos. Tenho certeza de que devem estar imaginando por onde ando.
                Logan percebeu que as nuvens continuavam engrossando.
                — Sim, tenho de ir também. Quero chegar em casa antes da chuva que se aproxima.
                — Quer uma carona?
                — Obrigado! Mas não precisa. Gosto de andar.
                — Sério? Nem imaginava! — disse, com um leve sorriso.
                Voltaram para casa pelo mesmo caminho quando chegaram ao trecho de cascalho, Beth tirou as mãos dos bolsos e despediu-se com um aceno.
                — Obrigada pela caminhada, Logan.
                Esperava que ele fosse corrigi-la, como havia feito com Ben, que lhe pedisse para chamá-lo de Thibault, mas ele não o fez. Em vez disso, ergueu o queixo ligeiramente e sorriu.
                — Eu que agradeço, Elizabeth.


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